
A Diversa já assistiu os filmes indicados ao Oscar 2023 na categoria de Melhor Filme. Nos próximos dias, você confere outras críticas por aqui!
Dificilmente há quem entenda mais da magia do cinema que Steven Spielberg. Em mais de 50 anos de carreira, a mente visionária do diretor foi responsável por criar sucessos que lideraram as bilheterias dos cinemas em suas épocas de lançamento e ficarão registrados por décadas na memória de crianças e adultos do mundo todo. Isso porque o diretor tem talento nato para liderar espetáculos visuais, que serviram como base para estabelecer o conceito de blockbusters em Hollywood. Por isso, ao longo dos anos, seus filmes foram copiados inúmeras vezes pela indústria, que falhou imensamente ao tentar repetir o carisma original das obras criadas por ele.
Aos 24 anos de idade, Spielberg lançou o suspense de perseguição Encurralado, seu primeiro longa-metragem, criado especialmente para a TV, que impressionou os produtores da Universal Pictures e garantiu a ele o comando de projetos de grande orçamento nos anos seguintes. Mas conforme foi compreendendo a complexidade das relações humanas, a maturidade artística do diretor fez com que ele sentisse a necessidade de ser enxergado como um cineasta sério, e por isso, começou a apostar também em projetos voltados a adultos. Se A Cor Púrpura foi um bom ponto de partida para iniciar essa nova fase, a maestria só foi alcançada em A Lista de Schindler, que mostrou a capacidade de Spielberg de dominar projetos dramáticos com firmeza. E para quem assistiu a esse último e achou que se tratava do filme mais pessoal do diretor, estava enganado.
Os Fabelmans é um registro autobiográfico com ambos os pés no chão, mas que não impede o idealizador de enriquecer essa jornada com detalhes mágicos de sua história de vida. Tendo início em 1952, somos apresentados a Sam Fabelman (Mateo Zoryan), que visita o cinema pela primeira vez na vida. Demonstrando um medo inocente da projeção, o garoto é reconfortado pelos pais, Burt (Paul Dano) e Mitzi (Michelle Williams), que explicam a ele, cada um à sua maneira, como um filme funciona. Encantado pela experiência, acompanhamos o crescimento do jovem, que tenta provar a todo custo que seu interesse pelo cinema não é só um hobby, mas sim um caminho no qual pode estabelecer uma carreira.
Só que a peça-chave que faz o longa funcionar é a relação que estabelece entre família e arte. Desprovido de intenções que poderiam soar egocêntricas ao projetar o diretor como um gênio visionário, o filme prefere focar nas memórias afetivas que o cineasta compartilhou ao lado da família durante sua juventude, composta pelos seus pais e duas irmãs. É uma história identificável, que retrata pessoas comuns, contada da maneira mais spielbergiana possível, e funciona ainda como uma declaração de amor ao cinema. Afinal, não é surpresa que a vida através das lentes de Spielberg pareça mais emocionante.
Talvez a figura mais fundamental do longa seja Mitzi: uma mulher cheia de energia que está sempre surpreendendo os entes queridos pelos próprios impulsos criativos. Reconhecemos as falhas da personagem ao mesmo tempo que criamos simpatia por ela. Acima de tudo, Mitzi é uma mãe doce e presente, que prioriza o bem-estar de todos, ao passo em que entra em conflito quando sentimentos ocultos são colocados em jogo. Alfred Hitchcock disse uma vez que encara a experiência de dirigir filmes como uma espécie de expurgo: “A única forma de me livrar de meus medos é fazer filmes sobre eles”. E, de certa forma, quando Spielberg expõe o dilema enfrentado por sua família de forma livre de julgamentos, está dizendo que não apenas perdoou sua mãe, como também compreende a decisão tomada por ela.
Em contrapartida, Burt é retratado como um homem sério e metódico que, apesar de carinhoso, pode ser visto como o extremo oposto de Mitzi. A primeira cena de Os Fabelmans estabelece bem essa diferença. Nela, o pai do protagonista (que é programador) explica o funcionamento de um filme para ele de forma extremamente técnica, que poderia confundir, ou até mesmo distanciar o garoto daquele tipo de arte. Logo em seguida, a mãe de Sam o conforta e enumera algumas das sensações maravilhosas que ele será capaz de sentir através daquela experiência. Dessa forma, pode-se dizer que os pais de Spielberg representam para ele duas musas inspiradoras: a Ciência e a Filosofia, e estabelecem no jovem um alicerce artístico e criativo.
Portanto, não é de se espantar que, a partir do momento em que o casamento dos pais começa a passar por turbulências e o futuro dos dois torna-se incerto, o cinema perde o sentido para Sam. Michelle Williams entende muito bem a responsabilidade dessa mensagem e se empenha de forma brilhante a fim de não vilanizar a personagem, tornando perceptível o carinho que sente por Mitzi. Ao mesmo tempo, a performance contida de Paul Dano é eficiente ao mostrar que Burt não desiste de lutar pela esposa, mesmo estando em grande desvantagem. Aliás, todas as atuações principais são de primeira linha, contando ainda com excelentes participações de Seth Rogen, Judd Hirsch, e até uma aparição divertida de David Lynch.
Enquanto isso, a parte racional do longa se concentra em ilustrar os esforços técnicos de Sam em projetar emoções por meio de filmes caseiros. Em uma das cenas mais memoráveis, Spielberg explica de forma emocionante que a narrativa cinematográfica tem poder de reverter papéis já estabelecidos na vida real e transformar pessoas em heróis ou vilões. Por isso, no momento que Sam registra o garoto antissemita que fazia bullying com ele como uma espécie de deus, acaba transportando as próprias inseguranças do atleta para a tela, e se vinga, ao mesmo tempo em que resolve com ele seus conflitos pendentes, numa passagem que demonstra todo o poder que um artista pode obter ao dominar qualquer aspecto da arte.
Apesar de contar com alguns momentos idealizados somente para impressionar os membros da Academia (e garantir alguns Oscars), Os Fabelmans transcende a premissa inicial do melodrama biográfico com alguns momentos inesquecíveis que já figuram entre os melhores de todos os 34 longas-metragens do cineasta, (como a da dança em frente ao farol), e explica a razão pelo qual ele ainda continue fazendo filmes com a mesma intensidade do caminhão que perseguiu Dennis Weaver pela estrada de maneira incansável, em 1971. E me parece satisfatório que também feche o ciclo perfeito que traz para dentro das telas uma parte essencial da vida de Spielberg, transformando arte e memória em um só elemento.
[Nota: ★★★★½]
Texto: Victor Ferreira
Gostei da crítica! Parabéns Victor Ferreira.
Excelente critica Victor. Parabéns!